A embarcação de casco rígido velejava solitária pelo mar adentro num dia ensolarado e de brisa leve. Vestido em sua túnica ricamente ornamentada, o velho marinheiro com ares de capitão olhava ao horizonte e fulgia num sorriso nervoso, mas que trazia consigo a superioridade dos mais experientes.
Sete homens executavam seu árduo trabalho braçal no convés, enquanto, no centro do navio, um jovem suava excessivamente, sentado a uma mesa simples de madeira e debruçado sobre um amontoado de pergaminhos. Lá o indivíduo de longas vestimentas punha-se a escrever freneticamente, manipulando mapas e escrituras. De tão compenetrado em seus estudos, parecia não perceber o sol escaldante que lhe fritava os miolos e o tornava rosado.
Assim é que por muitos dias tudo sucedeu, com exceção do clima que mudava bruscamente de intempéries ao manso marulho. Porém, no final da primeira semana, uma noite de graves tempestades surgiu sobre a imensidão azul. Os marujos, tão robustos, se amedrontavam com tal fúria das águas, jamais vista por sequer um deles.
Foi nesse dia nefasto que a desgraça se abateu sobre todos ali presentes e transformou por completo a vida do nervoso mancebo das escrituras. Este mesmo anunciou o infortúnio com sua formalidade de profissional:
-- Raios e relâmpagos! Estão caindo e selarão nosso túmulo junto das mordidas dos tubarões! Ó maldito barco que afunda e nos mata! Pagaremos com a vida a audácia de nos aventurarmos por estas bandas!
Logo o desespero invadiu a mente da tripulação. A correria sem rumo dos homens no convés condenava-os ainda mais aos atos falhos.
O primeiro rombo foi aberto no casco, seguido de um estrondo ensurdecedor que ecoou nos ouvidos dos navegantes, inaugurando os gritos de agonia. A embarcação começava a ser embebida em água e era acompanhada por uma festa de luzes e trovões. Sucessivas fendas rompiam a forte nau, despedaçando-a.
Três marujos em transe lançaram-se ao mar revolto e desapareceram. O capitão, que via sua liderança desrespeitada, jogou-se às águas como que por um lapso ou desistência à vida. Sua ação foi imitada pelo restante dos homens, exceto pelo rapaz aterrorizado dos pergaminhos. Este insistia em ficar sobre o assoalho de madeira que sucumbia, enquanto se abarrotava de mapas e anotações, com os quais certamente não conseguiria suportar a turbulência das ondas.
O jovem assistia, sobre o veículo naufragante, às tristes mortes de seus companheiros. Uns eram devorados por criaturas de tentáculos ao passo que outros simplesmente sumiam, sugados pelas vagas negras. Poucos eram os que tinham força e sorte suficientes para lutar contra a maré e nadar para longe da carnificina.
Impetuosamente, o rapaz saltou ao mar e iniciou seu nado estapafúrdio. Entretanto, o peso do material que carregava o fez afundar e por um instante faltou-lhe ar nos pulmões. Juntando todo vigor existente naquele ser, livrou-se dos pertences e tratou de nadar o máximo que podia, à procura de terra ou lugar seguro.
A violência das águas tornava cada vez mais difíceis as braçadas e pernadas para vencê-la. Esse trabalho não caberia a um humano; talvez nem um gigante fosse capaz de suportar tal situação. Porém o jovem não desistia. Usava suas últimas forças e, já perdendo sua consciência, mal notava a presença de seus próprios punhos a lutar afobadamente contra a água, que parecia ter vida.
* * *Esbaforido, o jovem acordou na areia molhada de alguma praia, à beira das ondas que chegavam já mansas de encontro ao seu corpo, fazendo-o engolir ainda mais água. Levantou-se semiconsciente e cambaleou, extremamente fatigado. Tossiu sem parar. Vomitou.
Suas ideias já voltavam à ativa. Não tinha mais rumo e seu intento agora era encontrar abrigo o quanto antes. Ergueu os olhos do chão e se deparou com uma densa floresta, que cobria toda a ilha onde se encontrava atordoado o homem. Entardecia, e principiou uma garoa anunciando a tempestade que estava por vir.
O medo se avolumava no corpo do desafortunado e por um instante ele quis morrer. Foi quando, contemplando a copa das robustas árvores, avistou o que parecia ser o topo de uma construção de pedra, num ponto muito distante, na parte mais elevada da ilha. A esperança retornou para o mancebo, que imediatamente correu em direção àquela figura. Esbarrando nas plantas, pisando na lama e se esgueirando, atravessava a floresta, enquanto ouvia ribombarem trovões.
Sua ânsia de achar um lugar seguro era tamanha, que o pobre homem se ia raspando nos troncos e galhos das árvores como um cão aflito. A mata parecia não acabar a seus olhos arregalados e os relâmpagos caiam nas proximidades.
Durante uma hora o homem correu até enxergar com nitidez o castelo que jazia à sua frente; então correu mais uma hora, ensangüentado pelas arranhaduras. Enfim, havia alcançado um lugar seguro; era uma fortificação repleta de limo e relativamente pequena comparada às tantas existentes no Continente dos Humanos. Pelo seu estado de deterioração -- com rombos nas paredes e uma grossa camada de sujeira -- aparentava ser um antigo e solitário castelo.
Fraquejando, procurou alguma passagem que o levasse ao interior, porém o forte era selado e sem nenhuma porta aparente. Ficou ali, totalmente ensopado, até que por fim encontrou uma rachadura, que mais parecia um rombo aberto propositadamente. Rastejou através dela uns dois metros, passando por baixo da muralha. Adentrara o castelo.
Felizmente chegara num local onde estaria protegido, embora tivesse então que conviver com os inúmeros ratos que saíam das prateleiras e armários daquela estranha câmara. Talvez estivesse na cozinha. Mas isso não interessava àquele homem sofrido, pois ele já estava dormindo.
* * *Os ratos passeavam sobre o homem que jazia no chão do aposento como um morto; ou melhor, como que fosse a nova presa dos roedores pestilentos. De repente, abriu os olhos o jovem sangrento e se levantou rápido, contorcendo-se pelas profundas feridas adquiridas desde sua queda da embarcação.
Debateu-se durante algum tempo para livrar-se das imundas criaturinhas que se apegavam com os dentes ao seu corpo. Soltou um grito, numa mistura de dor e ódio. Mal sabia onde estava, não tinha mais noção do tempo que havia decorrido ali naquele abrigo, porém agora tudo permanecia em silêncio; a tempestade passara.
Os ratos afoitos se alimentavam do sangue que pingava de seu corpo. Anêmico, o jovem observava a cozinha, procurando algo para comer. Nada havia; apenas ratos.
Vagou pelo castelo em busca de qualquer coisa que pudesse engolir melhor do que ratos. Foi examinando cada quarto por onde passava com os olhos incendiados em cólera. No entanto, estes se encheram de alegria ao mirarem a vasta biblioteca que lhe surgia no arrombar de uma porta dupla apodrecida.
-- Eu sabia!... Então é verdade. -- pronunciava os pensamentos em voz trêmula -- A ilha misteriosa que tanto procurávamos existe!... A lenda é verdadeira! Depois das desgraças, aqui está a grande dádiva da minha sobrevivência. -- caiu de joelhos e rezou fervorosamente -- Enfim, encontrei o tesouro que procurava desde que me tornei um historiador!...
Lágrimas escorriam incessantemente de seu rosto. Aquele dia decerto seria o mais feliz de sua vida, não fossem as mortes de seus companheiros. Ali estaria todo o objetivo de muitas vidas. Ali repousava durante centenas de anos a origem de tudo. Aquelas estantes abarrotadas de livros traziam consigo o que fora esquecido com o passar de séculos na história de Othá.
Agora, perdido naquela ilha, no ano de 1057 G.B. -- depois da Grande Batalha --, o historiador teria até o fim de sua vida para ler e reler todas aquelas escrituras.
Sua fome desaparecera e junto foram suas dores e angústias. Nesse instante de maravilhado alívio, notou a presença de uma escrivaninha de madeira, bem conservada, em meio aos armários cheios de escrituras que circundavam a sala. Sobre a mesa havia um grande livro, de aproximadamente duas vezes as dimensões dos outros. Embaixo dele estava um mapa desdobrado que ocupava toda a extensão da mobília.
No fundo da sala, sentou-se na cadeira que acompanhava a escrivaninha e analisou o mapa com minúcias. Devia estar em algum ponto entre Ilhelta e Sulareia, porém nenhum sinal ele encontrou que representasse a ilha onde estava. Percebeu tratar-se de um mapa antigo, de alguma época desconhecida ao sábio profissional.
Mesmo sendo historiador, nunca antes havia posto os olhos sobre um mapa tão bem detalhado. Além disso, o papel utilizado nele parecia não ter sofrido com o desgaste do tempo, emanava uma aura e possuía certo relevo; devia ser mágico.
Boquiaberto com tamanhas preciosidades existentes num só lugar, o historiador abriu o espesso livro sobre a mesa e iniciou sua leitura. Logo percebeu tratar-se de uma autobiografia. Porém, já no começo, encontrou uma intrigante borradela, uma espécie de correção póstuma. O título do primeiro capítulo estava riscado; inicialmente “Nascimento”, fora trocado por “Morte”, enquanto no trecho “Nasci em 539 G.B. em Santoine, cidade élfica que eu amava muito” fora inserida a observação “E morri em 699 G.B. A velhice me abateu”.
Curioso, o jovem se acomodou e apreciou a leitura, cada vez mais empolgado nas descrições daquele autobiógrafo chamado Lord...